Na manhã do último domingo, tive uma conversa com o doutor Felipe Gimenez, procurador do Estado de Mato Grosso do Sul. Discutimos os caminhos tortuosos que o sistema jurídico brasileiro vem trilhando, especialmente no que diz respeito à centralização do poder nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). A conversa girou em torno dos artigos 103 e 103-A da Constituição Federal e sua interpretação prática, que, segundo Gimenez, distorcem os princípios democráticos ao afastar o povo das decisões que moldam o país.
O ponto de partida foi uma questionamento meu sobre os dispositivos constitucionais que permitem a quase qualquer partido político ou entidade sindical questionar leis perante o STF. “Qualquer partido político ou sindicato pode frear uma pauta no Congresso acionando o Supremo”, comentei, ao destacar o artigo 103. A crítica não é nova, mas permanece urgente: estamos entregando ao Judiciário o poder de travar ou validar decisões políticas que deveriam ser resolvidas no Parlamento.
Felipe Gimenez prontamente puxou a linha histórica e filosófica dessa problemática. “No Brasil inventaram uma estrovenga que se apresenta como direito comum – do povo – sem povo”, afirmou, referindo-se à apropriação do conceito de juiz consuetudinário. No sistema anglo-saxão, especialmente o norte-americano, o direito consuetudinário (common law) está ancorado na participação popular por meio do júri. No Brasil, segundo ele, tal mecanismo é apenas uma fachada.
O artigo 103-A é outro ponto delicado. Ele permite ao STF aprovar súmulas com efeito vinculante, ou seja, decisões que passam a valer como regra para todo o Judiciário e para a administração pública. “Essas súmulas são também uma centralização de poder nas mãos do STF”, observei, lembrando que uma dessas decisões – como a polêmica Súmula 57, que teria tratado da liberação de drogas – abre precedentes de largo alcance sem qualquer consulta popular ou debate legislativo.
Segundo Gimenez, “sem povo no exame do fato não há juízo comum ou consuetudinário”. Em outras palavras, quando juízes decidem com base em seus próprios entendimentos, sem o crivo de representantes populares ou da sociedade civil, rompem com a lógica democrática que deveria sustentar o sistema jurídico. Ele aponta ainda que a função de legislar deveria caber exclusivamente ao parlamento, “instituído pelo mandato político outorgado pelo povo”.
Essa crítica é especialmente relevante quando analisamos a crescente atuação do STF em pautas de natureza legislativa, como decisões sobre descriminalização, moralidade pública ou gestão de políticas. Não raro, temas que deveriam passar pelo crivo do Congresso são resolvidos por onze ministros togados. E quando esses ministros aprovam súmulas vinculantes, suas decisões ganham peso de lei sem o rito do debate democrático.
“Quando o juiz faz a lei, usurpa a outorga do povo e, afastando o povo do poder, modifica brutalmente o regime político”, Felipe Gimenez.
Gimenez contrapôs o modelo norte-americano, onde o “jury trial” — julgamento por júri — é elemento central da justiça. Lá, cidadãos comuns decidem sobre a culpa ou inocência de um réu, inclusive em questões civis. É o povo, na essência, exercendo o Direito. “Entenda o papel FUNDAMENTAL do júri popular no sistema que propõe aplicar o costume do povo — não se trata do costume do juiz”, ressaltou.
Nos Estados Unidos, essa prática reforça o vínculo entre o Direito e a comunidade. Já no Brasil, decisões com impacto profundo na sociedade são tomadas por uma elite jurídica, distante da realidade popular. A promessa de um “direito do povo” esvazia-se quando o povo não é sequer ouvido.
Essa centralização pode ser revertida com ações políticas mais assertivas. “A direita tem 34 votos no Senado”, lembrei durante nossa conversa. “Com esse quórum já poderiam começar a frear esse tipo de coisa”. O Congresso tem instrumentos para conter o avanço do STF sobre suas prerrogativas — o que falta, muitas vezes, é vontade política e organização.
Como destacou Felipe, o desafio é cultural e institucional. Precisamos trazer esse debate para o público, para os cursos de Direito, para os meios de comunicação. É hora de discutir seriamente se estamos construindo um país baseado em leis feitas pelo povo ou em sentenças impostas por uma casta iluminada.
Nos filmes americanos, vemos advogados argumentando perante um júri popular e um juiz — uma representação clara do equilíbrio entre a lei e a opinião pública. No Brasil, esse equilíbrio parece cada vez mais distante. Precisamos recuperá-lo.
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